Romance da Harmonia Funcional

Para mostrar como fui levado para uma esquina longe da Tonalidade, tomo o carro-de-boi com vocês para um passeio campestre com ela: ela, em pessoa.

Vocês sabem, os conhecedores estudiosos gostam de complicar qualquer bê-a-bá, como se fosse um mistério cabuloso. Mas o Romance Tonal, assim como a trama de qualquer novela, se faz com uma sucessão de situações de tensão e repouso. Pondo de lado todas as exceções, comecemos:

Você nasce, está tudo normal, e é repouso como função tonal, mas já é vida, a música já existe. É a Tônica, o viver musical em estado plácido.

Lá pelos quatorze anos você acerta a primeira namorada. É um frio na barriga, um estado de elevação. A Harmonia Funcional chama este “salto” de Subdominante. Neste estado de elevação você se encontra com ela no jardim, pega sua mão, dá o primeiro beijo – são gorjeios da Subdominante.  Depois, na hora do jantar, tem de se despedir da menina e essa tensão nova, essa apreensão do primeiro “ até amanhã” chama-se Dominante. Você volta pra casa, sua mãe abre a porta, a tensão diminui com a apaziguadora recepção familiar e a Dominante se resolve numa nova Tônica. Pronto! Em simplificado percurso, eis a natureza e a justificativa do nome da Harmonia Funcional. O Romance da Tonalidade. Se você janta e vai dormir, nossa composição termina aí.

Mas um acontecimento intervém e exige que a música não acabe ainda. Um novo salto e uma nova tensão se aproximam. Seus tios vêm para uma visita e trazem aquela prima insinuante e graciosa. Estamos outra vez na Subdominante: vocês deixam as coxas encostarem debaixo da mesa, por acaso. E por acaso as mãos procuram mútuas regiões nobres de interesse vital. E vai a Subdominante se alongando em tensões variadas, com esses volteios melódicos. Mais tarde os tios se levantam para encerrar a visita e esse novo estado de tensão é outra vez Dominante, a excitação frustrada, a decepção.

Fecha-se a casa. A mamãe lhe dá um suco e estabelece-se novamente a Tônica, o repouso… Já foi uma música relativamente longa para este dia, dois percursos completos de Tônica, Subdominante, Dominante, Tônica (TSDT).

Acontece que às vezes o rapaz tem um namoro secreto com a vizinha. Namoro que só começa quando ambas as casa apagam as luzes e dormem. Nesse caso, a música já atinge uma tensão maior. Uma função harmônica mais complicada. Todos dormem e ele sente que é o momento de saltar o muro. Harmonicamente, é um caminho mais perigoso, uma “modulação” para um dos coincidentemente chamados Tons Vizinhos.

É preciso que, estando na Subdominante, em cima do muro, ele encaixe com cuidado um acorde da Dominante do Tom Relativo, um passo arriscado e cheio de percalços na composição musical. É preciso conduzir essa nova Dominante até empurrar a porta e entrar no quarto da vizinha. Em música, a todo passo arriscado corresponde um prazer maior que é essa nova Tônica, uma Tônica Relativa, distante do tom da partida, uma aventura rica de interesse estético. Tanto que, depois da permanência considerada conveniente e suficiente no sítio dessa Relativa – o quarto -, o caminho de volta requisita cuidado e habilidade. Deve-se provocar na linha melódica uma necessidade, uma necessidade premente da Dominante do antigo tom, pois sem essa exata Dominante é como se o nosso rapaz fosse parar no quarto da muito assustada viúva que mora na casa adiante, em vez de na casa de seus pais, provocando uma gritaria dodecafônica em todo o quarteirão.

Retomando e exata e certa Dominante do tom antigo, ela e mais nenhuma outra, ele volta para a reconfortante Tônica de seu próprio quarto e dá um suspiroso acorde final. Pronto. Por hoje não se aconselha mais música.

Teresa de Curitiba se faz de indignada: “Mas, Tom Zé, como é que você vai deixar um ambiente tonal de tão boas companhias, um mundo de repouso e bem-estar, onde as tensões, as próprias tensões são melhores ainda – tudo livre de aluguel?”

Bem, fui atraído por um amor irresistível. O nome desse amor é Ostinato: uma namorada gostosíssima, que me dá carinho durante toda a música. Essa apaixonante mulher, o Ostinato, eu tirava dela um gingado celestial. Até a bateria de um simples samba quadrado enche-se de molho com a presença  da moça e é um verdadeiro sonho, inventar uma melodia e cantá-la sobre esse balanço. Que felicidade!

Como tudo tem um preço nessa vida de meu Deus, minha divina mulher exige que eu fique a música toda em um acorde só. Fico desfalcado de saltos, muros, primas, subdominantes, vizinhas relativas – enfim, não tenho nada com que criar tensões.

A Harmonia Funcional, a tal proprietária das tensões, foi radical: “Ou ela, ou eu!” Entretanto a minha formosa Ostinato me dá uma vida tão venturosa que bato o martelo por ela.  Ficando sem primas, muros e vizinhas, sou obrigado a substituir as tensões, ou seja, o enredo, por tudo que possa criar interesse em cima de um acorde só.

Consegui me virar. Numa dificuldade maior, o esforço é maior, ou o prazer é maior. O fato é que a aventura com essa mulher me introduziu nos Estados Unidos e na Europa. Com ela David Byrne criou pra mim uma nova vida e me tirou da sepultura onde eu fora enterrado na divisão do espólio do Tropicalismo.    

Continua…

Zé, Tom. Tropicalista lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2003.

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